Lula sanciona lei que mira os ‘chefões’ do crime no Rio

Em resposta ao cenário de guerra que deixou mais de 120 mortos no Rio, nova legislação altera Código Penal para punir quem “contrata” facções e transfere líderes para presídios federais


O rastro de violência deixado pela megaoperação contra o Comando Vermelho (CV) no Rio de Janeiro, que, segundo autoridades estaduais, resultou em mais de 120 mortes, ecoou em Brasília. Em uma ação direta de fortalecimento do aparato estatal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, nesta quarta-feira (29), um pacote legislativo robusto focado no combate ao crime organizado.

A medida, publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira (30) e já em vigor, não é apenas simbólica: ela altera o Código Penal para tentar fechar o cerco contra as cúpulas das facções e, crucialmente, proteger quem está na linha de frente desse combate.

O fim da brecha para os “mandantes”

O ponto talvez mais cirúrgico da nova legislação é a mudança no artigo 288 do Código Penal, que trata da associação criminosa. Até agora, existia uma brecha legal frequentemente explorada por aqueles que, de longe, beneficiavam-se da estrutura das facções: os “mandantes”.

Indivíduos que solicitavam ou contratavam serviços de organizações criminosas – como execuções, intimidações ou pistolagem – muitas vezes escapavam de punições diretas, terceirizando a execução e a responsabilidade penal.

A lei sancionada por Lula busca encerrar essa impunidade. Agora, quem “solicitar ou contratar” a prática de crimes a membros de uma associação criminosa poderá ser punido com a mesma pena prevista para os próprios integrantes da facção — de 1 a 3 anos de reclusão. Essa pena é somada à punição pelo delito específico que foi encomendado, caso ele venha a ocorrer.

Especialistas em direito penal avaliam que a mudança é um avanço essencial para responsabilizar quem realmente lucra com a estrutura do crime, e não apenas o “varejo” da criminalidade.

Blindagem contra obstrução e asfixia nos presídios

A nova legislação, aprovada pelo Congresso Nacional, também cria duas novas modalidades de crime, desenhadas especificamente para blindar o trabalho do Estado:

  1. Obstrução de ações contra o crime organizado;
  2. Conspiração para obstrução de ações contra o crime organizado.

Não se trata de crimes menores. A lei estipula penas severas de reclusão, de 4 a 12 anos, além de multa, para quem tentar atrapalhar investigações ou operações.

Mais do que a pena, a sanção presidencial impõe uma condição dura: condenados (e até mesmo presos provisórios) investigados por esses delitos deverão iniciar o cumprimento da pena em presídios federais de segurança máxima.

A justificativa do governo é clara: tentar quebrar a espinha dorsal da influência que as facções exercem de dentro dos presídios estaduais. Ao transferir essas lideranças para o sistema federal, a intenção é asfixiar a capacidade de comando, reduzindo a influência que hoje transborda dos muros das prisões estaduais.

Proteger quem está na linha de frente

A lei não foca apenas na punição; ela olha para o lado humano da falha estrutural de segurança. Um dos pilares da medida é o reforço explícito na segurança pessoal de autoridades e servidores públicos que vivem sob ameaça constante.

O texto garante a ampliação da proteção a juízes, membros do Ministério Público, policiais e militares — inclusive aqueles já aposentados — que estejam sob risco em razão do exercício de suas funções. A medida reconhece a vulnerabilidade desses agentes e estende, de forma crucial, essa proteção também aos seus familiares.

A legislação faz questão de mencionar o reforço nas regiões de fronteira. Essas áreas, historicamente porosas e vulneráveis à influência de facções criminosas e ao contrabando internacional, são reconhecidas pela lei como pontos de atenção máxima, onde os servidores do Estado precisam de amparo redobrado.

A medida entra em vigor imediatamente, em um momento de alta tensão na segurança pública nacional, sinalizando uma tentativa do governo federal de responder ao avanço de organizações que desafiam o Estado.

A nova legislação fecha brechas no Código Penal e transfere chefes de facções para presídios federais de segurança máxima / Agência Brasil

Enquanto a tinta da sanção presidencial secava em Brasília, o Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio, vivia o capítulo mais sombrio da tragédia que motivou a nova lei. A megaoperação, agora confirmada como a mais letal da história do estado, revelou seu verdadeiro saldo não pelas estatísticas oficiais, mas pelas mãos dos próprios moradores.

Ao longo da madrugada desta quarta-feira (29), uma cena de guerra urbana se materializou na Praça São Lucas, na Estrada José Rucas. Moradores, exaustos e traumatizados, desceram da área de mata da Vacaria, na Serra da Misericórdia, carregando os corpos de seus vizinhos, filhos e conhecidos. Eles afirmam ter encontrado pelo menos 74 corpos.

O ativista Raull Santiago, um dos que ajudaram no resgate e no traslado dos corpos, resumiu o horror: “Em 36 anos de favela, passando por várias operações e chacinas, eu nunca vi nada parecido com o que estou vendo hoje. É algo novo. Brutal e violento num nível desconhecido”.

A atitude dos moradores, que visava facilitar o reconhecimento pelos parentes, expôs um cenário dantesco. Os corpos, todos de homens, foram deixados sem camisa para que tatuagens, cicatrizes e marcas de nascença ficassem visíveis. Muitos tinham feridas de bala visíveis, alguns estavam com o rosto desfigurado. Um deles havia sido decapitado, sem que se saiba como.

O “sucesso” e a batalha das narrativas

Em uma entrevista coletiva na tarde de quarta, a cúpula da segurança do Rio de Janeiro blindou a ação. O governador Cláudio Castro (PL-RJ) classificou a operação como um “sucesso” e foi taxativo ao definir quem são as vítimas: segundo ele, “só os quatro policiais mortos são ‘vítimas'”.

A “contabilidade” oficial apresentada pela cúpula é um campo de disputa e confusão. O secretário da Polícia Civil, o delegado Felipe Curi, atualizou os números: 121 mortos, sendo 4 policiais e 117 “suspeitos”. Curi também informou que foram 113 presos, sendo que 33 deles seriam de outros estados, como Amazonas, Ceará, Pará e Pernambuco.

Horas antes, porém, o próprio governador Cláudio Castro havia confirmado oficialmente apenas 58 mortos (54 “criminosos”), sem esclarecer por que o balanço da véspera, que apontava 64 mortos, havia sido alterado.

Sobre os corpos encontrados pelos moradores na mata — 74 segundo os ativistas, “63 corpos achados na mata” segundo o secretário Felipe Curi —, o governador foi evasivo:

“A nossa contabilidade conta a partir do momento que os corpos entram no IML. A Polícia Civil tem a responsabilidade enorme de identificar quem eram aquelas pessoas. Eu não posso fazer balanço antes de todos entrarem”, afirmou Castro. O secretário Curi prometeu que uma perícia irá verificar “se há relação entre essas mortes e a operação”.

O secretário de Segurança Pública, Victor Santos, ao defender a ação que mobilizou 2,5 mil agentes, chegou a classificar o “dano colateral” da operação como “muito pequeno”, afirmando que “apenas quatro pessoas inocentes morreram durante a ação” — uma referência direta aos quatro policiais.

A estratégia do “muro” e a acusação de “milagre”

O secretário da Polícia Militar, Marcelo de Menezes, detalhou a estratégia militar usada. Foi criado o que ele chamou de “Muro do Bope”: policiais avançaram pela área da Serra da Misericórdia para cercar os criminosos e empurrá-los em direção à mata. No interior da mata, outras equipes do Batalhão de Operações Especiais já estavam posicionadas, fechando o cerco.

A resposta do Estado à atitude dos moradores de resgatar os corpos para identificação foi dura. O secretário Felipe Curi, da Polícia Civil, afirmou que investigará os moradores por “fraude processual” pela remoção dos cadáveres.

Em tom de ironia, Curi falou sobre um suposto “milagre” com os corpos que apareceram na praça.

“Vale lembrar, para desmistificar certas narrativas, que parece ter ocorrido uma espécie de ‘milagre’ com os corpos que estão aparecendo hoje. Esses indivíduos estavam na mata, equipados com roupas camufladas, coletes e armamentos. Agora, muitos deles surgem apenas de cueca ou short, sem qualquer equipamento — como se tivessem atravessado um portal e trocado de roupa”, declarou Curi.

O secretário afirmou ter imagens de pessoas “despindo” os “criminosos” e colocando-os em vias públicas, sugerindo que a retirada das roupas foi uma tentativa de esconder a ligação dos mortos com o crime organizado.

Enquanto a polícia investiga os vivos por moverem os mortos, o atendimento às famílias para o reconhecimento oficial foi centralizado no prédio do Detran, ao lado do Instituto Médico-Legal (IML) do Centro, com acesso restrito à Polícia Civil e ao Ministério Público. As demais necropsias do estado foram transferidas para Niterói.

Com informações de g1*

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