Governo Lula quer evitar rótulo de defensor de traficante
Planalto atua para gerenciar a crise de imagem gerada pela chacina no RJ. Em vídeo, governo critica a lógica do “matar criminosos” e diz que “matar 120 pessoas não adianta nada”
A cena de moradores carregando dezenas de corpos para a praça no Complexo da Penha e a confirmação da operação mais letal da história do Rio de Janeiro não geraram apenas horror e luto; dispararam um alarme político de alta intensidade em Brasília. O massacre, conduzido pelo governo de Cláudio Castro (PL), colocou o Palácio do Planalto em uma delicada sinuca de bico: como condenar a barbárie sem parecer estar do lado do crime?
Nos bastidores, segundo assessores palacianos, o presidente Lula recomendou à sua equipe “calibrar o discurso” sobre a megaoperação. A ordem expressa era evitar uma posição de “ataque frontal” ao governador Cláudio Castro.
O pragmatismo político falou mais alto. O governo federal não podia arcar com a imagem de “quem defende traficantes”. Essa preocupação foi agravada pelo peso de uma frase “infeliz e equivocada” dita anteriormente pelo próprio presidente, de que “traficantes são vítimas dos usuários”, um fantasma que a oposição explora à exaustão.
Essa vulnerabilidade é um ponto nevrálgico para o campo progressista. O próprio presidente do PT, Edinho Silva, reconhece abertamente que a esquerda “tem dificuldades de enfrentar o tema da segurança pública”. Edinho admite que, embora a defesa dos direitos humanos seja “correta”, ela muitas vezes acaba “passando a imagem de conivência com traficantes” para uma parte da sociedade.
Diante desse dilema, a resposta de Brasília foi cirúrgica. Em vez da ruptura, a cooperação tática. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, anunciou, em uma ação coordenada com o próprio Castro, a criação de um escritório emergencial de combate ao crime organizado no Rio.
A decisão cumpre um duplo papel: sinaliza ação federal, mas evita o isolamento. O governo também não podia “passar o recado de que não aceitava trabalhar em conjunto” com o governador, exatamente porque a “PEC da Segurança Pública”, principal bandeira de Lula para a área, “prega ação unificada”.
A narrativa calculada de Lula
Para dar o exemplo do tom desejado, o próprio Lula foi às redes sociais com uma postagem onde cada palavra foi medida pelo seu efeito político:
“Não podemos aceitar que o crime organizado continue destruindo famílias, oprimindo moradores e espalhando drogas e violências pelas cidades. Precisamos de um trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal do tráfico sem colocar policiais, crianças e famílias inocentes em risco”.
A estrutura da frase revela a estratégia. Primeiro, uma crítica direta ao “crime organizado”, blindando-se das acusações de conivência. Depois, a defesa de um trabalho “coordenado” (a PEC).
Por fim, o detalhe mais calculado: ao falar dos riscos, Lula mencionou “policiais” em primeiro lugar na frase, antes de “crianças e famílias inocentes”. Foi uma busca consciente de evitar a mensagem de que “a esquerda não gosta da Polícia”, desarmando um dos principais ataques de seus opositores.
“Matar criminosos parece solução”

A nova linha de comunicação do governo foi consolidada em um vídeo impactante, publicado na página oficial do governo federal no Instagram. A peça defende o combate ao crime “com inteligência”, mas vai além, fazendo uma crítica direta ao modelo de operação adotado por Cláudio Castro.
O vídeo reconhece o sentimento popular que legitima esse tipo de ação: “com razão, as pessoas têm medo e raiva do crime organizado. E matar criminosos, então, parece solução. É isso que explica a operação no Rio”.
Contudo, o governo federal contrapõe essa lógica imediatamente, apontando sua falha humana e estratégica:
“Só que operações como essa também colocam policiais, crianças e famílias inocentes em risco”, diz o narrador.
A peça então desfere a crítica mais dura à eficácia da política de “enxugar gelo” com sangue: “E matar 120 pessoas não adianta nada no combate ao crime. Porque mesmo se forem todos bandidos, amanhã tem outros 120 fazendo o trabalho”.
O vídeo conclui apontando a alternativa defendida pelo Planalto, focada em asfixiar a estrutura financeira e logística, em vez de apenas acumular corpos no varejo: “Para combater o crime, precisa mirar na cabeça. Mas, não de pessoas. Tem que atacar o cérebro e o coração dos grupos criminosos”.
A materialização daquele “discurso calibrado” veio rápido

No início da noite desta quarta-feira (29), enquanto a cidade ainda tentava dimensionar o número de mortos e famílias iniciavam o doloroso processo de reconhecimento no IML, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, desembarcou no Rio de Janeiro.
O destino foi o Palácio Guanabara, sede do governo estadual. A reunião com o governador Cláudio Castro, arquiteto da operação, durou pouco mais de uma hora — tempo suficiente para selar a resposta política à crise e apresentá-la à imprensa.
O anúncio foi a criação de um “escritório emergencial de combate ao crime organizado”. Na prática, um gabinete de crise para “compartilhar informações”, “promover ações integradas” e, principalmente, “derrubar a burocracia que existe entre os governos do estado e federal”.
A medida serve, taticamente, aos dois lados: Cláudio Castro ganha um selo de cooperação federal, e o governo Lula mostra ação sem precisar endossar a carnificina.
O governador, no entanto, fez questão de reafirmar que não há qualquer possibilidade de pedir uma GLO – o decreto da Garantia da Lei e da Ordem. A mensagem é clara: o Rio aceita ajuda e recursos, mas rechaça uma intervenção federal militar que tire o controle da segurança de suas mãos.
Ao justificar o novo escritório, Castro, em uma fala que parece ser uma admissão velada das falhas que levaram ao caos, mencionou o “plano de recuperação de território” e a necessidade de evitar que “situações que aconteceram dessa vez aconteçam outra vez”.
“No cumprimento do plano de recuperação de território tem muitas coisas federais e estaduais. E para não deixar até situações que aconteceram dessa vez acontecerem outra vez, a ideia é estar os dois governos, federal e estadual, para que a gente possa derrubar barreiras de burocracia. Talvez isso seja o grande mote, a grande ideia desse escritório”, disse Cláudio Castro.
Lewandowski, por sua vez, cumpriu o roteiro de cooperação e ofereceu os meios “inteligentes” que o Planalto defende, em oposição à estratégia de confronto direto.
“Nós vamos tomar algumas medidas emergenciais e uma medida mais permanente, que se projeta no tempo: esse escritório emergencial de enfrentamento ao crime organizado, onde nós vamos conjugar as forças federais com as forças estaduais para resolvermos rapidamente, celeremente, os problemas com os quais nós nos deparamos para a solução dessa crise”, afirmou o ministro.
Em um gesto prático, Lewandowski também colocou à disposição de Castro “peritos criminais que podem ser recrutados na Força Nacional e também de outros estados”, uma oferta de ajuda técnica federal para lidar com o volume de corpos e cenas de crime.
Este novo comitê, que busca ser a resposta institucional à maior chacina da história do estado, será coordenado pelo secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sabugo, e pelo secretário estadual de Segurança Pública, Vítor dos Santos — o mesmo que, horas antes, havia defendido a operação e classificado o “dano colateral” da morte de civis como “muito pequeno”.
