“Estado ainda é muito ausente”, diz conselheira tutelar Heloísa Helena
Assistente social, técnica em Química e servidora pública aposentada, Heloísa Helena foi eleita para seu 3º mandato como conselheira de São Conrado/Rocinha
O Rio de Janeiro foi uma espécie de cidade-síntese da disputa travada entre forças conservadoras e progressistas na eleição para os conselhos tutelares (CTs). Só o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, apoiou sete dos 190 conselheiros eleitos (entre titulares e suplentes) na capital fluminense em 1º de outubro. Políticos bolsonaristas também se empenharam em conquistar algumas vagas. O espaço pareceu mais reduzido para candidaturas de esquerda, tradicionais defensoras do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Foi sob esse contexto de polarização que sobressaiu a vitória de Heloísa Helena Moraes Cardoso, eleita para seu terceiro mandato como conselheira. Com o lema “Buscando justiça, bem-estar e os direitos da criança”, ela recebeu 1.183 votos e foi a primeira colocada entre os candidatos ao Conselho Tutelar de São Conrado/Rocinha. O novo mandato é de quatro anos (2024-2028) – os conselheiros eleitos tomam posse no próximo dia 10 de janeiro.
Assistente social e técnica em Química, Heloísa Helena é servidora pública aposentada. Elegeu-se conselheira tutelar pela primeira vez em 1996. “Era uma outra época, muito mais difícil. Se os 19 conselhos atuais já parecem insuficientes para dar conta de tanto trabalho, imagine naquele período, quando havia apenas dez conselhos”, compara. “Como tudo ainda era muito novo, trabalhávamos em condições precárias, sem instrumentos adequados.”
Os conselhos tutelares haviam surgido apenas seis anos antes, com sanção do ECA (Lei Nº 8.069/1990). Sua missão, conforme resume Heloísa Helena, “é atender a crianças e adolescentes com direitos violados ou ameaçados. Como se trata de um órgão não jurisdicional, o conselho atua quando há vulnerabilidades ou negligências, mas em situações que não envolvam cunho judicial”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente substituiu o Código de Menores e se tornou referência internacional em legislação sobre direitos infanto-juvenis. Mas a lei não foi acompanhada de outros avanços indispensáveis que dependem do Poder Público. “O Estado ainda é muito ausente e não provê crianças e adolescentes nem nas responsabilidades mais básicas, como saúde, educação e habitação. Os conselhos são os órgãos que comunicam o Poder Público e requisitam a realização desses serviços.”
A atuação nos territórios aproxima os conselheiros tutelares da comunidade. Violência doméstica, abandono e abusos sexuais estão entre os casos complexos pelos quais os CTs são acionados. “Acima de tudo, estamos às voltas com vítimas da desigualdade social, o que se agravou com a pandemia de Covid-19. São muitas famílias que moram em condições precárias, na linha da vulnerabilidade, muitas em comunidades e algumas em situação de rua.”
Por lei, cada território com 100 mil habitantes precisa ter um conselho tutelar. O Rio de Janeiro, a exemplo das grandes metrópoles do País, não cumpre essa cota à risca. A abrangência do CT de São Conrado/Rocinha, por exemplo, é grande parte da zona sul do Rio. “Só a comunidade da Rocinha tem quase 200 mil moradores – e ainda atuamos em áreas como Jardim Botânico, Horto, Gávea, Leblon, Ipanema, Vidigal e São Conrado.”
O dia a dia envolve até demandas de migrantes e refugiados, que não são poucas. “Muitas vezes, o conselho tutelar – que é voltado especificamente à proteção integral da criança e do adolescente – é usado para camuflar a ausência de serviços públicos. Acumulamos muitas funções que não deveriam ser nossas.” No caso de São Conrado e Rocinha, são cinco conselheiros e dois assessores técnicos, além da equipe administrativa – um time enxuto demais para tanto trabalho.
Em 2023, a disputa para os conselhos tutelares levou quase 129 mil eleitores às urnas só no Rio de Janeiro – uma mobilização recorde, 20% superior à da eleição de 2019. Na visão de Heloísa Helena, a direita “está muito bem estruturada” e busca eleger conselheiros para impor uma “pauta paralela”. Outro interesse das forças conservadoras é gerir os recursos do Fundo Municipal para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMADCA), que financia políticas públicas.
Apesar do quórum maior de eleitores, Heloísa Helena critica as regras da eleição. “É tudo muito engessado e pouco divulgado. O processo de apresentação de candidaturas é muito concentrado na prefeitura, e a campanha tem muitas proibições, dificultando a escolha do cidadão comum.”
Entre os desafios para o conselho tutelar, um dos mais importantes é se tornar mais conhecido. “Vários órgãos que trabalham com crianças não sabem quase nada do ECA”, afirma a conselheira. O uso de um sistema de dados articulado com outros órgãos públicos também precisa avançar. Hoje, dos 19 conselhos tutelares do Rio, apenas dois já usam o Sipia (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência). “A agilidade que essa ferramenta dá é impressionante”, atesta Heloísa Helena.
A mudança na administração federal – com o fim do governo de destruição de Jair Bolsonaro (PL) – pode ajudar os conselhos. “A gestão da Damares Alves (no antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) era voltada ao fundamentalismo. Até questões como a do aborto de uma criança estuprada eram levadas para o campo ideológico, da igreja”, recorda Heloísa Helena. “Hoje, com o Silvio Almeida, já podemos ao menos respirar.”