Dia da Consciência Negra chega em meio ao impacto da maior chacina da história
Pesquisadores afirmam que a ausência do Estado em serviços básicos e sua presença quase exclusiva na repressão aprofundam desigualdades nas favelas
Vinte de novembro. O país celebra o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, data que pela segunda vez se consolida como feriado nacional, mesmo após 137 anos da abolição da escravatura. Mais do que um marco no calendário, o dia se transforma em um convite à reflexão sobre o passado que insiste em moldar o presente — especialmente quando o assunto é violência policial, racismo estrutural e desigualdades que atravessam gerações.
Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam que a data chega em um momento de forte impacto coletivo, pouco após a Operação Contenção, realizada em 28 de outubro nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. A ação policial deixou 121 mortos, entre eles 2 policiais militares e 2 policiais civis, e foi classificada como a maior chacina da história do país.
Entre as 117 pessoas mortas pelas polícias Civil e Militar, nenhuma havia sido denunciada ao Ministério Público do Rio de Janeiro. A gravidade do episódio levou a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ) a criar um observatório para monitorar o cumprimento da lei durante todo o processo de apuração.
O principal alvo da operação, Edgar Alves de Andrade, o “Doca”, apontado como liderança do Comando Vermelho (CV), segue foragido 23 dias depois da ação.
População negra como alvo histórico da violência
Um levantamento de 2023 realizado pelo Ibase, pelo Instituto Raízes em Movimento e pela ONG Educap mostra que 79% dos moradores do Complexo do Alemão são negros, dado que ajuda a compreender o impacto desigual da ação policial. Não há números atualizados sobre o Complexo da Penha.
Para a pedagoga Mônica Sacramento, coordenadora da ONG Criola, o 20 de novembro deve ir além da homenagem simbólica.
“Acho que essa é uma data é muito importante e que todos os temas que atingem a população negra. De maneira significativa e avassaladora, a perda de direitos e tudo mais devem ser comentados e analisados nesta data.”
Ela reforça que o Dia da Consciência Negra não é apenas um marco comemorativo — é um momento dedicado à resistência e à afirmação histórica da população afrodescendente.
Operações policiais e o legado da violência colonial
O economista Daniel Cerqueira, um dos coordenadores do Atlas da Violência, considera que discutir operações policiais neste 20 de novembro é “totalmente pertinente”. Ele destaca que a raiz da violência atual está ligada a estruturas forjadas ainda durante o período colonial.
Ele lembra que, antes mesmo da existência de um Estado brasileiro, o território era estruturado para a exploração econômica e sustentado pelo uso sistemático da violência.
Para Cerqueira, os acontecimentos recentes nos complexos da Penha e do Alemão são um reflexo direto dessa herança. Ele afirma que seria “impossível imaginar” uma operação com tamanha letalidade em áreas como Copacabana, Ipanema ou Leblon.
“Só é possível imaginar uma guerra às drogas, uma guerra aos traficantes apenas nesses lugares onde moram negros e pobres.”
Segundo o Atlas da Violência, uma pessoa negra tem quase três vezes mais chances de ser assassinada do que uma pessoa branca: para cada 10 homicídios de brancos, há 27 mortes de negros ou pardos no país.
Violência atual como continuação de séculos de exclusão
A advogada Raquel Guerra, pesquisadora e docente em Direitos Humanos na UERJ, lembra que a escravidão perdurou por mais de 300 anos e alcançou mais de 20 gerações — e que após a abolição não houve políticas de garantia de direitos básicos como terra, propriedade ou educação.
“A presença do Estado da população negra e pobre sempre foi e continua sendo a da não promoção de direitos.”
Para ela, a violência policial atual é apenas a superfície de um problema histórico profundo. Raquel afirma ainda que a Operação Contenção pode levar o Brasil novamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cide), assim como ocorreu após as chacinas de 1994 e 1995 na Nova Brasília, e no caso das 171 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão.
Letalidade normalizada e ausência do Estado fora da repressão
A promotora Lívia Sant’Anna, do Ministério Público da Bahia, reforça que o Dia Nacional de Zumbi é também um dia de denúncia.
“Não foi pensado como uma data comemorativa apenas. É um marco da memória, da luta e também de denúncia.”
Ela afirma que analisar operações como a da Penha e do Alemão significa encarar de frente uma política de segurança que normaliza a letalidade contra homens e mulheres negros.
Segundo a promotora, moradores dessas regiões quase nunca sentem a presença do Estado de forma positiva — apenas em ações violentas, como a Contenção.
Impacto duradouro nas favelas: educação, medo e evasão escolar
A professora Juliana Kaizer, pesquisadora da UFRJ e da PUC-Rio, alerta que operações policiais não apenas espalham pânico nas comunidades, mas também interrompem serviços básicos, como o funcionamento das escolas.
Quando crianças e adolescentes deixam de frequentar a escola por medo ou interrupção das aulas, muitos acabam não retornando mais.
Juliana observa que isso aprofunda desigualdades:
“Seguiremos com gerações de analfabetos funcionais, que conseguem assinar o nome, mas não decodificar um texto complexo.”
Sem formação adequada, o destino tende a ser o mercado informal, com baixos salários, sem direitos e mais vulnerável à exploração. Para ela, o Estado insiste em tratar o sintoma — a violência — sem atacar a origem, que está na desigualdade e na ausência de políticas sociais.
A promotora Lívia Sant’Anna completa:
“O Estado não pode estar presente apenas no viés da segurança entendida como uma guerra. O estado precisa estar presente na educação, na cultura, na assistência social, no cuidado, na saúde, né, e não apenas pela repressão.”
Milícia e tráfico: atuação desigual das polícias no Rio
O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que as forças de segurança no Rio têm estratégias distintas para áreas controladas por facções e por milícias.
Entre 2017 e 2023, mais de 70% das localidades dominadas por facções registraram confrontos com a polícia. Já entre áreas dominadas por milicianos, o índice cai para 31,6%.
Os números dos tiroteios mostram um abismo ainda maior:
- 40,2% dos confrontos ocorreram em áreas de tráfico;
- apenas 4,3% das ações policiais com troca de tiros aconteceram em áreas de milícia.
