Entenda o ‘motivo’ que a polícia usou para matar e começar uma guerra no Rio
O vídeo de uma tortura, gravado por um dos investigados, expõe o sadismo do crime e o uso da brutalidade como instrumento de poder
Mas para o Estado, o que justifica a mobilização de 2.500 homens e a tática de emboscada do “Muro do Bope”? A resposta está na investigação que serviu de pretexto para a megaoperação. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) denunciou 69 pessoas, revelando que a atuação do Comando Vermelho nos complexos da Penha e do Alemão ia muito além da venda de drogas.
A investigação desenha um cenário de crime diversificado. Segundo a denúncia, traficantes locais expandiram seus negócios para roubos de carros e até ataques a caixas eletrônicos com explosivos, agindo como uma empresa do crime com diferentes filiais.
Um dos alvos, Samuel Almeida da Silva, o Samuca da 29, é apontado como gerente de uma boca de fumo na Penha. No entanto, sua ambição era maior. Em trocas de mensagens interceptadas, Samuca admite a um comparsa, identificado como Drope, sua participação em um assalto a banco em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em abril de 2022.
Na conversa, Samuca encaminha uma reportagem sobre o roubo, que mostra a agência bancária completamente destruída pela explosão. O diálogo que se segue é um retrato sombrio da lógica do crime:
Samuca: Visão (olha) que bonito.
Drope: Estourou, né, pai. Quero ir nuns bagulhos assim. (…) Só assim pra ficar suave.
A troca de mensagens expõe a banalidade da violência e a busca por um “sucesso” rápido (“ficar suave”) através de ações espetaculares e destrutivas.
A investigação também mirou em Andrews Lagoa da Silva, o Sedex, descrito como um soldado do tráfico na Penha com “significativo envolvimento com roubos de carros na cidade do Rio”. Ele não apenas participava das ações, mas também negociava a venda dos veículos roubados. Em uma das mensagens, Sedex oferece um carro a um contato identificado como Sapo, para um comprador de outra cidade.
Em uma troca de mensagens, Sedex oferece um carro com um contato identificado como Sapo para um comprador de outra cidade.
Sapo: O amigo pode ir buscar?
Sedex: Só mais tarde posso te falar.
Sapo: Já é. Tá só te aguardando para vir.
Sedex: Mano, ele vai pagar R$ 8.500?
Sapo: Sim. Vendi por 9. Vou segurar 500 para mim.
Sedex: Já é.
Em outra conversa, Sedex negocia com um contato identificado como Pagador Bom:
Sedex: Tô com um fastback aqui.
Pagador Bom: Quanto?
Sedex: Me dá 7 mil. Tá com 3 km rodado, placa boa.

O horror como justificativa
Contudo, a face mais brutal da investigação, e aquela usada para desumanizar o inimigo e justificar a letalidade da resposta do Estado, foi encontrada no celular de Fagner Campos Marinho, o Bafo.
Bafo, classificado como outro soldado do tráfico e preso na terça-feira, colecionava fotos ostentando fuzis e drogas. Mas a polícia encontrou algo mais: um vídeo de uma sessão de tortura.
Nas imagens, um homem não identificado aparece amarrado, deitado no chão, visivelmente ensanguentado. Enquanto uma pessoa pisa na cabeça da vítima, Bafo filma a cena e narra com deboche, em uma demonstração de poder absoluto sobre a vida e a morte:
“Aí, tá tentando correr aqui. Demos uma massagem nele aqui, tá ligado? Tira o pé da cabeça dele. Quer morrer logo? Quer morrer?!”
A crueldade registrada por Bafo foi fundamental para a denúncia do MP por tortura. No documento, os promotores descrevem a cena: “a conduta violenta consistiu em agredir insistentemente a vítima, que ensanguentada e parcialmente desnuda, estava caída ao solo, amarrada e sem reação”.
O MP ainda destaca o sadismo de Bafo ao gravar a própria confissão: “O denunciado gravou vídeo com a vítima ensanguentada, gemendo de dor, reconhecendo que foi ele quem torturou (‘deu massagem’) naquela pessoa, e, logo após, indagando à vítima ‘quer morrer?’.”
É essa barbárie individual, registrada em vídeo, que o governo Cláudio Castro usa como escudo moral para a sua própria barbárie coletiva. O Estado aponta para o traficante que tortura e pergunta “Quer morrer?!” para justificar uma operação que, horas depois, deixaria 117 “suspeitos” mortos, muitos deles encurralados em uma mata, sem qualquer chance de defesa, respondendo àquela mesma pergunta com um “sim” imposto pela força.
Relembre o caso: madrugada de terror em Caxias
A “obra” da qual Samuel Almeida da Silva, o Samuca da 29, se orgulhava em suas mensagens não foi um crime trivial. O “Visão (olha) que bonito” era uma referência direta à madrugada de terror vivida por moradores de Santa Cruz da Serra, em Duque de Caxias, no dia 8 de abril de 2022.
Aquele evento, agora usado como peça-chave na investigação do MPRJ, expõe a audácia e a violência dos grupos que o Estado alega combater.
Naquela madrugada de sexta-feira, por volta das 3h, a população local não acordou com o despertador, mas com o som de tiros e um estrondo ensurdecedor. O alvo era uma agência do Banco Bradesco na Avenida Automóvel Clube.
O ataque foi meticulosamente planejado, com táticas de guerrilha urbana. Os criminosos atravessaram uma carreta na esquina para bloquear completamente o trânsito e o acesso da polícia. Para garantir a fuga e impedir qualquer perseguição, espalharam uma grande quantidade de pregos pela rua.
A força da explosão, necessária para arrebentar os caixas eletrônicos, foi desproporcional. A agência bancária ficou completamente destruída. Peritos que analisaram a cena mais tarde confirmaram que a quantidade de explosivo utilizada foi imensa, evidenciada pelos estilhaços que foram arremessados até o outro lado da rua, ameaçando janelas e a segurança dos prédios vizinhos.
Enquanto a fumaça ainda subia, e antes que se pudesse saber se haviam conseguido levar o dinheiro do banco, a quadrilha demonstrou um nível de oportunismo caótico: não satisfeitos, invadiram uma farmácia próxima.
Do estabelecimento, não levaram apenas o dinheiro do caixa. Roubaram também remédios e, num detalhe que beira o bizarro, todas as latas de energético que encontraram.
Este é o crime que, meses depois, seria compartilhado como um troféu digital por “Samuca da 29”. É a soma desses atos de violência — a tortura filmada por “Bafo”, os carros roubados por “Sedex” e as explosões em Caxias — que compõe o argumento oficial.
Para o governo de Cláudio Castro, esses crimes individuais são a justificativa moral para a megaoperação. A resposta do Estado, contudo, não foi uma captura cirúrgica desses indivíduos. Foi o “Muro do Bope”, a emboscada na mata e o saldo histórico de 121 mortos, transformando a busca por justiça em uma licença para o massacre.
