Moradores do Rio carregam corpos após chacina; praça vira necrotério

Moradores da Penha carregam 55 corpos da mata à praça após a operação mais letal da história do Rio, enquanto o governo tenta maquiar o número de vítimas


A madrugada desta quarta-feira (29) no Complexo da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, não foi de luto silencioso. Foi de trabalho braçal, desespero e trauma coletivo. Moradores da região, exaustos após a operação policial mais letal da história do estado, foram forçados a subir a mata e carregar, um por um, os corpos de seus vizinhos, amigos e familiares.

Pelo menos 55 corpos foram transportados pelos próprios moradores e depositados na Praça São Lucas, na Estrada José Rucas, um dos principais acessos da comunidade. A praça, um local de encontro e lazer, foi convertida em um necrotério a céu aberto, um símbolo trágico do que ativistas já classificam como uma chacina histórica.

A ação da comunidade expõe uma discrepância brutal nos números oficiais. O governo do Rio de Janeiro havia anunciado, na terça-feira (28), o resultado da megaoperação na Penha e no Alemão como um sucesso, contabilizando “60 criminosos” mortos, além de quatro policiais que também perderam a vida.

No entanto, os 55 corpos na praça não estavam nessa conta.

Nesta quarta-feira, o secretário da PM, coronel Marcelo de Menezes Nogueira, foi obrigado a admitir que, “a princípio”, esses corpos não constam da contabilidade oficial. A declaração fria do secretário abre uma ferida ainda mais profunda: o número real de mortos na operação pode ser assustadoramente maior.

Se confirmada a relação dessas 55 novas vítimas com a ação policial — o que será objeto de perícia —, o total de mortes pode ultrapassar 100. Uma centena de vidas perdidas em uma única política de “guerra” que há décadas vitimiza majoritariamente a população pobre e negra das favelas.

“Eu nunca vi nada parecido”

A praça São Lucas virou símbolo de um país que terceiriza o luto e obriga seu povo a enterrar os mortos que o Estado produz e abandona / Reprodução

Os corpos, segundo apuração do g1, estavam na área de mata da Vacaria, na Serra da Misericórdia. Foi ali que se concentraram os confrontos mais intensos entre as forças de segurança e traficantes. A cena descrita por quem esteve no local é de um filme de guerra.

Pior: moradores afirmam que o que foi visto na praça não é tudo. Eles garantem que ainda há muitos mortos “no alto do morro”, em locais de difícil acesso, abandonados após o fim dos confrontos.

O ativista Raull Santiago, uma voz conhecida na defesa dos direitos humanos nas favelas, foi um dos que ajudaram a retirar os corpos da mata. Visivelmente abalado, ele descreveu o cenário como algo inédito em sua vida, marcada pela violência do Estado.

“Em 36 anos de favela, passando por várias operações e chacinas, eu nunca vi nada parecido com o que estou vendo hoje. É algo novo. Brutal e violento num nível desconhecido”, disse.

A fala de Santiago ecoa o sentimento da comunidade: a operação de terça-feira ultrapassou um limite de violência até então desconhecido.

O desespero para identificar os mortos

A decisão de levar os corpos para a praça não foi um ato de protesto, mas de pura necessidade. Segundo o g1, o objetivo do traslado desesperado foi facilitar o reconhecimento dos corpos pelos parentes.

Em um estado funcional, caberia ao poder público realizar a remoção e garantir um processo digno de identificação. Na Penha, coube às mães, pais e irmãos a tarefa macabra de procurar seus entes queridos entre os corpos empilhados.

A cena na Praça São Lucas foi apenas o capítulo mais visível do caos. Mais cedo, em outro ato de desespero, moradores transportaram outros 6 corpos em uma Kombi e os deixaram no Hospital Estadual Getúlio Vargas. O veículo, segundo relatos, chegou em alta velocidade e saiu rapidamente do local, como quem descarta uma carga indesejada.

Diante da tragédia e da ação da comunidade, a Polícia Civil informou que o atendimento às famílias para o reconhecimento oficial ocorrerá no prédio do Detran, ao lado do Instituto Médico-Legal (IML), a partir das 8h.

Em uma demonstração de controle burocrático sobre o luto, o acesso ao IML será restrito à Polícia Civil e ao Ministério Público. As demais necropsias da cidade, sem relação com a operação, foram transferidas para o IML de Niterói, mostrando a total sobrecarga do sistema diante da carnificina.

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