A carnificina que o Estado chamou de operação

A maior chacina policial da história do Rio escancara o fracasso de uma política que insiste em trocar inteligência por sangue e medo por poder


Um banho de sangue. Esta terça-feira (28) entra para a história sombria do Rio de Janeiro como o dia da operação policial mais letal já registrada no estado. Sob a justificativa de combater o Comando Vermelho (CV) nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte, a megaoperação autorizada pelo governo estadual deixou um rastro de 64 mortos.

Entre as vítimas fatais, estão quatro policiais. Oitenta e uma pessoas foram presas. O recorde macabro foi confirmado pelo Palácio Guanabara, selando o fracasso de uma política de segurança pública baseada no confronto e na dizimação.

A política de “guerra às drogas”, que repetidamente se prova falha e ceifa majoritariamente vidas negras e pobres, ganhou contornos de carnificina. Em declaração no início da noite, o governador Cláudio Castro afirmou que a ação “não tinha hora para terminar”, um cheque em branco para as forças de segurança em um território já conflagrado.

A população local, novamente sitiada, relatou um novo e intenso tiroteio por volta das 18h30. O terror, para quem vive nas comunidades, estava longe de acabar.

O trabalhador paga a conta

E como sempre, a conta da falência da segurança pública recaiu sobre o trabalhador. No início da tarde, em represália à operação, o tráfico orquestrou o caos em pontos nevrálgicos da cidade, transformando o Rio em um cenário de guerra.

Quem tentava voltar para casa após um dia exaustivo de trabalho encontrou o caminho bloqueado pelo medo. A Linha Amarela, a autoestrada Grajaú-Jacarepaguá e a movimentada Rua Dias da Cruz, no Méier, foram apenas alguns dos muitos locais que tiveram o trânsito interrompido por barricadas, feitas com veículos tomados, entulho e fogo.

O cidadão comum virou refém, preso em um engarrafamento de pânico e incerteza, sem saber se conseguiria chegar em casa e encontrar sua família em segurança.

A resposta oficial apenas confirmou o colapso. O Centro de Operações e Resiliência (COR) do Rio foi forçado a elevar o estágio operacional da cidade para o nível 2 (em uma escala de 5), um eufemismo técnico para uma cidade fora de controle.

Em uma medida desesperada, o comando da Polícia Militar suspendeu todas as atividades administrativas e ordenou que “todo o efetivo” fosse para as ruas. A imagem é clara: uma cidade sitiada, onde a única resposta do Estado é mais polícia, mais confronto, e o resultado, como hoje se viu, é mais morte.

A justificativa oficial para o massacre

Este episódio brutal é vendido pelo governo como “mais uma etapa da Operação Contenção”. O nome, por si só, revela a ideologia: uma “iniciativa permanente” de combate ao avanço territorial do CV. Não se trata de inteligência ou política social; trata-se de guerra permanente e declarada contra os territórios pobres.

Para executar esta etapa, o Estado mobilizou uma verdadeira força de ocupação: 2.500 agentes das forças de segurança foram despachados para cumprir 100 mandados de prisão. Uma proporção que, por si só, já antecipava o confronto direto em vez da captura.

Ainda no fim da madrugada, quando o trabalhador se prepara para a sua rotina, os complexos foram acordados pelo som da guerra. Traficantes reagiram à chegada das equipes com tiros e barricadas em chamas. Um vídeo que circula pelas redes sociais é aterrador: “quase 200 disparos em 1 minuto” são ouvidos, enquanto colunas de fumaça preta sobem das comunidades, desenhando o cenário de terror.

Segundo a narrativa da Polícia Civil, em retaliação, “criminosos lançaram bombas com drones”. A polícia também relatou uma cena que remete à falida ocupação de 2010: traficantes teriam fugido “em fila indiana pela parte alta da comunidade”. Um retrato da repetição, que prova que, uma década depois, a única resposta do Estado continua sendo a bala.

As vidas perdidas

A estatística oficial é um placar de guerra civil. O governo contabiliza 60 “suspeitos” mortos em “confronto”. Sessenta vidas ceifadas, classificadas sumariamente como inimigas. Entre eles, segundo o governo, dois eram da Bahia e outro, do Espírito Santo.

Mas a violência do Estado não escolhe alvo com precisão. Quatro policiais, trabalhadores da segurança pública, também tombaram, vítimas de uma política que os joga na linha de frente de um conflito sem solução:

  • Marcus Vinícius Cardoso de Carvalho, 51 anos, conhecido como Máskara, recém-promovido a chefe de investigação da 53ª DP (Mesquita);
  • Rodrigo Velloso Cabral, 34 anos, da 39ª DP (Pavuna);
  • Cleiton Searafim Gonçalves, do Bope;
  • Herbert, também do Bope.

E, como sempre, os “inocentes” — termo que o próprio Estado usa para diferenciar quem eles matam — também são atingidos. Pelo menos três civis foram feridos pela operação:

  • Um homem em situação de rua foi atingido nas costas por uma “bala perdida” e levado para o Hospital Getúlio Vargas.
  • Uma mulher que estava em uma academia também foi ferida, mas, por sorte, já recebeu alta.
  • Um homem que estava em um ferro-velho.

O cidadão sitiado

Para além dos mortos e feridos, a operação impôs um estado de sítio à população. Onde o Estado deveria prover direitos, ele impôs o medo: escolas e postos de saúde não abriram. Crianças ficaram sem aula, doentes sem atendimento. A cidadania foi suspensa para que a guerra pudesse acontecer.

Ao fim do dia, o “balanço” oficial é apresentado como um troféu: 81 pessoas foram presas. Foram apreendidos 93 fuzis, 2 pistolas e 9 motos.

O governo celebra o arsenal recolhido. Mas para as 64 famílias em luto e para uma cidade paralisada pelo medo, o que resta é a certeza de que, para o Estado, algumas vidas valem menos que outras, e que a “contenção” é apenas um nome bonito para a carnificina.

Enquanto o asfalto queimava e a população era encurralada, as autoridades apresentavam seus troféus e suas justificativas. Entre os mais de 80 presos, o governo anunciou a captura de Thiago do Nascimento Mendes, o “Belão do Quitungo”, um dos chefes locais, e de Nicolas Fernandes Soares, apontado como “operador financeiro” de uma das principais lideranças do CV, Edgar Alves de Andrade, o “Doca” ou “Urso”.

Em uma demonstração de força, o secretário de Segurança Pública, Victor Santos, fez questão de frisar que a operação foi desenhada “com antecedência” e sem apoio federal. “Toda essa logística é do próprio estado”, disse, antes de usar uma frase que revela a visão do governo sobre as favelas: “São aproximadamente 9 milhões de metros quadrados de desordem no Rio de Janeiro”.

Santos mencionou que 280 mil pessoas vivem nessas áreas, mas rapidamente minimizou o custo humano da operação: “Lamentamos profundamente as pessoas feridas, mas essa é uma ação necessária, planejada, com inteligência, e que vai continuar”. A continuidade, no caso, é a promessa de mais sangue.

Em meio à maior chacina operacional da história do estado, iniciou-se a troca de acusações. O governador Cláudio Castro, em coletiva, culpou o governo federal pela falta de apoio, afirmando que o estado “estava sozinho”.

“Tivemos pedidos negados 3 vezes: para emprestar o blindado, tinha que ter GLO, e o presidente [Lula] é contra a GLO. Cada dia uma razão para não estar colaborando”, reclamou Castro, transferindo a responsabilidade pela carnificina.

O governo federal, por sua vez, rebateu. Em nota, negou a falta de ajuda e afirmou que “tem atendido prontamente a todos os pedidos do governo do estado para o emprego da Força Nacional”. Uma disputa política que ignora o luto das 64 famílias.

Educação e transporte paralisados

A retaliação do tráfico foi imediata e sufocou a metrópole. A cidade foi sequestrada. Ônibus foram atravessados e incendiados, servindo como barricadas em vias expressas vitais, como a Avenida Brasil, a Linha Amarela e a Linha Vermelha, além da Grajaú-Jacarepaguá.

O caos se espalhou do Centro à Zona Oeste, passando pelo subúrbio (Tijuca, Méier, Cascadura, Anchieta) e cruzando a baía, com bloqueios na BR-101, em São Gonçalo.

A Rio Ônibus confirmou que mais de 100 linhas tiveram seus trajetos alterados, deixando milhares de trabalhadores a pé. A Mobi-Rio informou que os corredores Transbrasil e Transcarioca do BRT, o transporte de massa da população mais pobre, também foram severamente impactados.

O futuro também foi suspenso. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Federal Fluminense (UFF) suspenderam suas aulas. A FAETEC de Quintino fechou as portas.

Escolas particulares, em pânico, pediam que os pais buscassem seus filhos. Na rede municipal, o epicentro do confronto, a Secretaria de Educação confirmou que 31 escolas no Alemão e 17 na Penha foram diretamente impactadas. A cidadania foi, mais uma vez, suspensa.

A anatomia da operação

A carnificina foi justificada como o resultado de “1 ano de investigação” da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), com apoio do Ministério Público (MPRJ). A ação, que também mirava criminosos de outros estados (pelo menos 30 alvos seriam do Pará), mobilizou o que há de mais pesado na estrutura de guerra do estado.

Participaram o Comando de Operações Especiais (COE) da PM e agentes de todas as delegacias especializadas da Polícia Civil. O aparato era de ocupação: helicópteros, blindados, ambulâncias (prevendo o resultado) e “veículos de demolição” — uma ferramenta sinistra para se usar em áreas densamente povoadas.

Enquanto os corpos eram contados, o MP divulgava a parte burocrática da ação. O Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ) denunciou 67 pessoas por associação para o tráfico e três homens por tortura.

Na denúncia, os promotores descrevem o Complexo da Penha como “estratégico” para o CV em seu projeto de expansão contra a milícia em Jacarepaguá — uma guerra particular onde o Estado entra não para proteger o cidadão, mas para eliminar um dos lados.

O MPRJ aponta “Doca” (Edgar Alves de Andrade) como a principal liderança, ao lado de “Pedro Bala”, “Gadernal” e “Grandão”. Segundo a promotoria, “eles emitem ordens sobre a comercialização de drogas… e ordenam execuções”.

Além deles, 15 “gerentes” e dezenas de “soldados” foram denunciados. No fim do dia, o que resta é um saldo de 64 mortos, uma cidade aterrorizada e a burocracia do sistema de justiça, que justifica a matança em pilhas de papel enquanto ignora as pilhas de corpos.

Com informações de G1*

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